No plano simbólico, a candidatura de Marina tem-se valido de sua história absolutamente fantástica de vida para seduzir o eleitor dos grandes centros urbanos brasileiros.
Busca trazer os povos da floresta amazônica para o centro do debate da política, cuja estrutura de poder “não coercitivo”, apontada nos estudos clássicos de Pierre Clastres nas décadas de 1960 e 1970, sobreviveu como modo de vida em constante conflito com a modernização conservadora promovida pelo “poder coercitivo” (tipicamente ocidental) do regime militar.
Assim como Lula soube projetar sua marcante experiência da origem sertaneja nordestina para o centro da industrialização paulistana e mover um dos maiores processos de desenvolvimento econômico de nossa história recente – como recentemente publicou Eliane Brum em um instigante artigo sobre as diferentes trajetórias simbólicas de Lula e Marina –, a trajetória simbólica de Marina está sendo oferecida ao eleitor como o substrato de uma “Nova Política”, em contraponto à continuidade do legado de Lula.
Legado este que por Lula foi depositado em outra trajetória de vida que é Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar o posto máximo de comando da nação.
A projeção de Marina dá-se sobre a leveza do povo da floresta, capaz de subverter valores duros da sociedade ocidental pautada pelo poder coercitivo e cognitivo do valor, cujo caráter está presente em tal ordem nos grandes centros urbanos que se apresenta como leis imutáveis, tão imutáveis que parecem suprimir as possibilidades libertadoras da vida urbano-industrial.
O modo generoso de Marina se apresenta como uma verdadeira ilusão ao eleitor dessas classes médias, negando conflitos internos de uma sociedade tipicamente capitalista para, como um cacique, resolver o destino de todos sem a inexorável necessidade de comando e obediência. Abusando mais de Milan Kundera, Marina é puro kitsch.
O paradoxo que rompe a leveza de Marina é que ela trouxe Clastres para o centro da política, mas ele não veio sozinho, chegou acompanhado de Adam Smith.
A inconsistência mais importante na plataforma de Marina é a combinação entre aprofundamento do Estado de Bem-Estar com o exótico encontro entre a antropologia da “Sociedade contra o Estado” com a apologia da infalibilidade do mundo privado mercantil para produzir uma ação política efetivamente transformadora.
Essa incongruência aflora especialmente na parte econômica do programa de governo marinista, quando se define o Estado como antígeno da Sociedade – o cerne do pensamento liberal, cujas consequências inviabilizam a execução de um programa de governo dito progressista na questão social.
Por o Estado ser considerado “fora” da sociedade, a realização social seria refratária às instituições estatais, estabelecendo um caminho de permanente desmonte destas últimas.
O problema é que subjacente a essa separação está a economia de mercado – sempre operando para gerar desigualdades, cuja condição periférica da especificidade brasileira torna essa dinâmica ainda mais concentradora e excludente.
A visão neoliberal contaminou pontos fundamentais do programa de Marina. Na política externa, adere-se a uma perspectiva burocrática, estamental, da “diplomacia não ideológica”, um mito conservador mesmo para os tempos do Barão, tão velho quanto a formação do Estado brasileiro.
A negar mecanismos permanentes de consulta à sociedade civil, como a proposta do Conselho de Política Externa, Marina enterrou qualquer perspectiva modernizadora da política externa. Nas relações de trabalho, o apoio ao discurso das terceirizações está alinhado às demandas históricas do empresariado de desmonte branco da Consolidação das Leis Trabalhistas, e muitos outros pontos.
O aceno de Marina feito aos mercados, portanto, não se resume à política macroeconômica – foi muito além –, atingiu a visão de mundo da candidatura, a visão liberal de mundo. Leitora que é de Hannah Arendt, Marina deveria ter percebido que essa confluência liberal é exatamente o motor da desconstrução do espaço da Ação pelo avanço indiscriminado do Trabalho (como fetiche), aquilo que Arendt nomeou “artificialização do mundo”.
A “Nova Política”, que deveria ser uma leitura de Marina inspirada nos autores críticos da democracia liberal, como Arendt e Zygmunt Bauman, consistiria no reposicionamento do homem no centro da Ação, deslocando a sua face artificial e fetichista criada pela sociedade do valor. O antagonismo do campo político de Marina aponta para o inverso disso.
O liberalismo, ao abandonar a sociedade à própria sorte do mercado e ao privatizar persistentemente as esferas públicas de sociabilidade, tem o papel histórico de reforçar o deslocamento entre homem político e homem mercadoria, portanto de corroer as bases de um novo encontro da política.
Paradoxalmente, a ideologia máxima do liberal está em acreditar que a sociedade de mercado seria essencialmente igualitária, como se a introdução do antígeno Estado provocasse, sempre, distorções, sendo válida apenas quando na ausência do mercado, nas condições em que a presença do Estado torna-se um “mal necessário”.
O Estado, na “Nova Política”, deveria ser peça central da transformação do homem, desmercantilizando necessidades coletivas e deslocando-as para fora do circuito da acumulação.
Essa perspectiva – que foi abraçada com todas as forças pelo pensamento social-democrata e formou a base de nossa Constituição Federal de 1988 – está também presente em setores progressistas do ambientalismo, apoiadores de Marina, que veem em sua candidatura a possibilidade de expandir direitos coletivos socioambientais.
Nada mais justo; no entanto, a adesão ao liberalismo em sua radicalidade destruirá esses direitos, pois se perde o Estado, único instrumento capaz de dirigir o processo de ascensão civilizacional ante a barbárie do mercado. Smith é o algoz de Clastres.
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