Ao escrever sua Teoria Geral, Keynes desafiou a sabedoria da classe dos economistas, recomendando que sua função no âmbito governamental deveria se restringir ao mesmo papel que exerce um dentista ao realizar o check-up de rotina: intervir apenas quando as dores de dente atormentarem o paciente.
No Brasil, os cargos da área econômica assumem outra feição e os nomes anunciados pelos candidatos presidenciáveis temperam a disputa presidencial como frango na encruzilhada à meia noite. Ou o nome escolhido é bom, ou é politicamente barato, isto é, capaz de atrair o apoio do mercado financeiro. Não por outro motivo, enquanto Guido Mantega perambulava em seu Keynesianismo meia-bomba, Lula mantinha Henrique Meirelles no Banco Central.
Durante o governo Bolsonaro, seu ministro da Economia, por ele mesmo apelidado de “Posto Ipiranga”, recebeu um poder detido somente por Delfim Netto na época da ditadura. Mas mesmo recebendo do presidente poderes quase imperiais, na falta dos canhões de que o czar econômico da ditadura dispunha, Paulo Guedes se contentou em emular o modus operandi do governo de forma um tanto mais polida, mas não menos desajeitada. As bravatas do superministro arrecadaram frutos políticos para Bolsonaro, que hoje parecem ter apodrecido na safra dos Pandora Papers.
A dor de dente da vez, ou melhor, outra vez, é a explosão inflacionária tão mal interpretada pelos operadores da política econômica, pois ao invés de arrancar o dente defeituoso, se esmeraram em aplicar botox vencido para alongar o sorriso. Não menos equivocados estão os analistas internacionais, ao assistirem os barulhos vindos da oferta utilizando-se de um método um tanto mais suave, recomendando anti-inflamatórios que prometem aliviar a dor dentro de um prazo desconhecido.
A difusão global da inflação não guarda relação nem com a expansão fiscal de 2020, realizada para combater os impactos pandêmicos sobre a economia, nem com algum efeito retardado das injeções monetárias nos sistemas financeiros inflacionando os bens básicos negociados nos mercados internacionais de commodities, como está nos confins da consciência dos economistas do mainstream, remontando a eras Ricardianas, onde “ouro demais, na troca de vinhos por tecidos, ou calçava sapatos deixando todos sóbrios e caretas, ou todos bêbados, ainda que pelados”.
A raiz do problema, tanto no país do carnaval, quanto na terra da rainha, e por onde mais a inflação demonstrou ser resistente, exceção feita à Venezuela, está na desarticulação dos elos das cadeias produtivas de bens agropecuários, além dos insumos básicos, como petróleo e gás. Contudo, tal desarticulação demonstra ser o subproduto da paralisia do comércio internacional gerada pela crise sanitária.
O problema de fundo não está nos dentes, mas na raiz inflamada da economia mundial: a hierarquia entre as moedas, que estabelece a qualidade da moeda emitida por um país em relação ao dólar, a moeda-chave do sistema monetário internacional. Essa qualidade é relacionada, por um lado, com a capacidade de liquidação de transações internacionais por uma determinada moeda e, por outro, com a segurança oferecida pela posse dessa moeda, fazendo com que, a cada trovoada dos mercados financeiros, os detentores de ativos corram para a qualidade, isto é, para moeda-chave que pode se converter em qualquer coisa, inclusive em tranquilidade quando os ventos da tempestade sopram para todas as direções, como ocorrido no período pandêmico.
A ofensiva monetária do FED, o BC dos EUA, moveu o dólar para um processo gradual de valorização que impactou diferentemente os países. Países como o Brasil, cuja moeda não é dotada de conversibilidade, não podendo adquirir sequer um hot-dog em nova York, tem sua taxa de câmbio imediatamente impactada, flutuando com altivez inabalável pelas pixotadas do BC brasileiro ao vender reservas à vista, como quem joga sobras de carne para um leão faminto.
No hemisfério norte, onde as moedas apresentam maior qualidade, isto é, são conversíveis, podendo adquirir de hot-dogs a ativos em todos os cantos do mundo, ainda que ao preço de certa desconfiança no olhar, as taxas de câmbio são também movidas pelo balé da moeda estadunidense em ritmo sistêmico: valorização de lá, desvalorização de cá, e assim sucessivamente, salvo a prudência do BC europeu ao mexer no preço do euro, operando na marcação a prazo do preço à vista, o que equivale a varrer a sala, esperando por uma visita.
Retornando a Keynes, durantes os embates no acordo de Bretton Woods, o infalível otimismo do inglês recomendava um rearranjo da ordem internacional, preponderantemente na instância monetário-financeira. As preocupações que fundamentaram as recomendações de Keynes centravam-se na transferência de recursos ocorrida dos países cronicamente deficitários para os países superavitários em termos comerciais e financeiros. O problema da transferência de recursos não apenas barrava a capacidade dos governos de estimularem o crescimento econômico, forçosamente paralisado pelos ajustes recessivos realizados pelos países deficitários, mas submetiam as taxas de câmbio a brutais flutuações, como aquelas assistidas no entre guerras.
Keynes, então, recomendou a criação de um “Banco Central dos Bancos Centrais”, chamado Clearing Union, que operaria com uma moeda própria. A função desse banco seria realizar a compensação entre déficits e superávits, oferecendo grau de liberdade para que as políticas econômicas fossem voltadas ao crescimento sem grandes tropelias cambiais. A Clearing Union serviria também como mecanismo de ajuste e desenvolvimento dos países, ao impulsionarem o poder de compra das moedas nacionais sem necessidade de submissão às draconianas condições dos grandes bancos privados na avaliação de seus riscos soberanos.
Quanto aos bens agrícolas e insumos essenciais, Keynes recomendou que a Clearing Union mantivesse um estoque regulador virtual, isto é, sem existência física imediata, mas que poderia ser ativado caso os preços desses suprimentos essenciais de consumo familiar e industrial fossem sacudidos por choques de oferta, isto é, desarticulações na produção que levassem a uma escalada nos preços internacionais. Ou, ao contrário, especulações em torno dos preços desses bens que levassem a desarranjos no poder de compra de países não produtores de determinado bem.
Contudo, a proposta de Keynes era que a comunidade internacional fosse sócia da estabilidade, contrastando com o “revanchismo do vizinho”, como se assistiu a partir dos anos 1970, quando a economia mundial sofreu os baques estruturais da hierarquia de moedas, os mesmos que na essência debulham as intempéries na produção, revelando o desajuste monetário.
No Brasil, o cenário é ainda mais aterrador, como revela o relatório do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP [1], afetado pela crise energética e seus impactos hídricos, reforçada com a inflação que vem do desajuste cambial e do desarranjo da oferta de bens agropecuários e de insumos básicos, fontes favoráveis para a especulação financeira que opera no ganha-ganha com a ajuda da equipe econômica de Bolsonaro. Enquanto a taxa de câmbio eleva a inflação, os produtores privilegiam as exportações, empurrando ainda mais os preços para cima, e o presidente do BC atira as taxas de juros aos píncaros, facilitando as operações casadas nos mercados futuros, e na Petrobras. Preço pra frente que o jogo é lucro.
E Paulo Guedes? Esquenta sua conta offshore nas Ilhas Virgens Britânicas arrematando lucros com os balanços da taxa de câmbio, oferecendo em troca as eternas promessas das reformas estruturais para tentar manter o mercado ao lado do governo. Fabulando com a liberdade do riso tragicômico: como se na fábula do menino e do lobo, Guedes berrasse ao mercado sempre que o lobo eleitoral aparece ameaçando levar os cordeiros da Faria Lima para o lado petista. Acontece que entre o lobo e a aldeia dos investidores, existe o cercadinho de verdinhas americanas.
[1] Pós-Graduando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da UNICAMP
[2] Núcleo de Estudos de Conjuntura, Relatório Trimestral de Conjuntura: Incertezas e Fragilidades, FACAMP, outubro de 2021: https://www.facamp.com.br/pesquisa/economia/nec-facamp/
Crédito da foto da página inicial: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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