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Foto do escritorPaula Quental

A história do ‘boêmio cívico’ que ousou criar um projeto-interpretação-utopia de Brasil

Atualizado: 13 de ago.


Entrevista com Alexandre de Freitas Barbosa

O personagem Rômulo Almeida, ex-assessor de Getúlio Vargas, e reflexões sobre o ‘Brasil desenvolvimentista’ de 1945 e 1964 são tema de obra do professor do IEB-USP Alexandre de Freitas Barbosa, premiada pelo Cofecon como melhor livro de economia em 2022. Nessa entrevista, ele nos fala sobre o trabalho e por que é importante repensar desenvolvimento

Como tema de sua tese de livre-docência, defendida no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), o professor de economia Alexandre de Freitas Barbosa escolheu se debruçar sobre a trajetória do baiano Rômulo Almeida (1914-1988), personagem quase desconhecido, porém importante na história do país. Rômulo foi chefe da Assessoria Econômica do segundo governo de Getúlio Vargas (1950-1954), quando, ao lado de Jesus Soares Pereira, Cleanto de Paiva Leite e Ignácio Rangel, entre outros, se dedicou a sonhar e estabelecer as bases do que deveria ser um país economicamente robusto, soberano e socialmente justo.


O grupo varava madrugadas no Palácio do Catete, no Rio de janeiro, então sede do governo federal – daí o apelido de “boêmios cívicos” – pesquisando, redigindo relatórios e minutas. Entre os vários projetos nascidos dessas “noitadas” está, por exemplo, o que estabeleceu as bases para a criação da Petrobras, Eletrobras, CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e BNB (Banco do Nordeste).


Alexandre Barbosa: ‘O desenvolvimento não é assunto só de economistas, nunca foi, não deveria ter se tornado e está deixando de ser’. Foto: Nara Quental

Recuperar a trajetória de Rômulo – tarefa que demandou dez anos de pesquisas – foi o “fio” que Alexandre encontrou para puxar a discussão sobre “desenvolvimentismo” e “nacional-desenvolvimentismo”, e contrastar as visões de hoje com a formulação, bem mais abrangente, da época em que ele atuou. Sua proposta foi “recontar uma parte da história que se perdeu”, em especial do “grupo de burocratas-intelectuais-militantes, provenientes dos quatro cantos do território brasileiro, que se lançaram na tarefa de promover o desenvolvimento nacional a partir da cidadela estatal”, descreve na introdução do livro originado da tese, “O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia”, lançado em 2021 pela editora Alameda.


Em 2022, a obra recebeu o prêmio melhor livro de economia do Conselho Federal de Economia (Cofecon), durante o XXVII Simpósio Nacional dos Conselhos de Economia (Since). Nessa entrevista, feita com exclusividade para o Brasil Debate, Alexandre fala sobre Rômulo Almeida, o conceito de Brasil desenvolvimentista e a importância de se revisitar, nos dias atuais, projetos como o deste grupo de “intelectuais orgânicos do Estado”, imbuídos de um forte compromisso e “senso de missão” em relação com país.

Capa do livro publicado pela editora Alameda e premiado pela Cofecon.

Leia, a seguir, a entrevista:


Brasil Debate – Como surgiu o interesse por Rômulo Almeida, um servidor público dos bastidores, alguém longe dos holofotes? Pode-se dizer que o escolheu como fio condutor para investigar o desenvolvimento brasileiro?


Alexandre de Freitas Barbosa Exato.  Montei uma equipe, fui pra Bahia, onde há o Instituto Rômulo Almeida de Altos Estudos (IRAE), que reúne cartas, documentos, várias palestras que ele dava. Esse arquivo e o do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da FGV) foram fundamentais. O material sobre o período do Rômulo na Assessoria Econômica do Getúlio Vargas (1951-1954) está no CPDOC, no acervo de Jesus Soares Pereira. Nesse arquivo pesquisei muita coisa, como a criação do Banco do Nordeste do Brasil, da própria Petrobras, tem muito documento lá.


Rômulo se envolveu nessas e em outras iniciativas, como os projetos de criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, da CAPES. Seu nome aparece em todas as notas de rodapé da literatura sobre pensamento econômico e desenvolvimento no Brasil, mas nunca com destaque. Ele era um dos 59 “patronos do desenvolvimento” elencados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), ao lado de nomes como Celso Furtado, Mário de Andrade e Nise da Silveira.


No prefácio que fez para o meu livro, Gabriel Cohn usa uma imagem que eu gosto muito: o personagem Rômulo, coadjuvante, seria como um pião que percorre todas as áreas do Brasil desenvolvimentista (período entre 1945 e 1964), este o personagem principal. A partir do Rômulo, vários outros personagens que contracenavam no Brasil desenvolvimentista vão aparecendo. Por Brasil desenvolvimentista eu entendo o movimento das estruturas, dos intelectuais com as suas interpretações sobre as estruturas e, ao mesmo tempo, as estruturas transformando a maneira de os intelectuais pensarem (o desenvolvimento). Mas os intelectuais não atuam de maneira livre e aberta, eles atuam a partir de posições sociais. Aí descobri que o Rômulo é um intelectual orgânico do Estado. Uma categoria gramsciana, mas que não cai no esquema gramsciano.


Pode explicar melhor?


Porque em (Antonio) Gramsci você tem o intelectual tradicional, que defende a ordem existente, e os intelectuais orgânicos das classes fundamentais do capitalismo, que são a burguesia e o operariado. Só que esse pessoal (o Rômulo e os outros técnicos e intelectuais do setor público durante o governo de Getúlio) que está compondo o Estado, é da classe média baixa, a maioria, curiosamente, do Nordeste. Eles chegam ao Estado via concurso público, via Departamento Administrativo do Serviço Público, o DASP, que é de 1938, durante o Estado Novo, e que, paradoxalmente, permitia o acesso ao Estado dessa classe média baixa.


O Celso Furtado era “daspiano”, mas o pai era juiz, o (Ignácio) Rangel não era daspiano, o Rômulo tinha pais pequenos produtores rurais que vão para Salvador, mas ele consegue fazer o ginásio. Quanto ao Cleanto de Paiva Leite, a mãe era professora primária e o pai professor. É o Estado que permite a mobilidade social e é a partir do Estado que eles vão tentar deslocar os interesses oligárquicos. Eles vão tentar conter a função do Estado cartorial, que é um conceito do Hélio Jaguaribe.


O Rômulo é um intelectual que eu chamo de “praxista”. Nunca fundou uma teoria, nunca escreveu um livro, a não ser coletânea de artigos, mas ele processa tudo isso e transforma em projetos de Estado e com uma capacidade de mobilizar muita gente. O Rômulo foi o cara com o qual o Getúlio mais despachou. Talvez depois do Lourival Fontes, que era o chefe de gabinete.


Fotos: Nara Quental

O Rômulo fazia parte desse grupo que ficou conhecido como “boêmios cívicos”, integrado também pelos já citados Ignácio Rangel, Jesus Soares Pereira e Cleanto de Paiva Leite. Qual a origem dessa expressão e qual a importância do grupo?


Esse foi o nome carinhoso dado pelo Getúlio. Recentemente estive lá no primeiro andar do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, que hoje é o Museu da República, para visitar a sala de onde ele via, à noite, o grupo trabalhando nos pareceres no anexo do Palácio. Então são os boêmios cívicos. Quando Rômulo chegou, o ambiente era de uma repartição. Ele mandou mudar os móveis e foi colocada uma mesa grande no anexo, onde todos trabalhavam juntos, cheia de livros.


Quando um não sabia uma coisa perguntava para o outro. Houve o episódio da mensagem presidencial de Getúlio recém-empossado ao Congresso, em 1951, que Ricardo Bielschowsky revelou em seu livro (“Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo”, de 1988), e que mostra que esse pessoal fazia coisas meio heróicas. Rômulo foi incumbido de redigir a mensagem e contou com uma equipe de cerca de 50 pessoas, daspianos ou não, para fazer uma prestação de contas da máquina pública e expor a visão programática de Getúlio. Iam reunindo informações de cada área do governo, fazendo minutas e colocando nas pastas “Geka” (nome da empresa que na época fabricava esse tipo de pasta para documentos), e aí entravam os redatores.


Esse documento da mensagem presidencial pautou o Brasil nos dez anos seguintes. Escrito por todo esse pessoal, tendo o Rômulo e o Jesus Soares Pereira à frente, que foram também os dois caras que criaram a Petrobras. Tem um artigo que publiquei em outro livro, que é um anexo da tese, que mostra como eles pensavam. Um semestre pesquisando no acervo do Jesus pude entender com quem eles negociaram, onde o Getúlio mexeu, já que ele estava sempre checando o projeto. E tinha plena confiança neles. Dizia: “Eu quero um projeto nacionalista, mas para funcionar”.


Esse era o briefing passado aos “boêmios cívicos”?


Uma espécie de senha, “Eu quero um projeto nacionalista, mas para funcionar”. Aí tem até a confusão do texto do Hélio Jaguaribe “O nacionalismo na atualidade brasileira”, que provocou um racha no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), que o publicou, e foi criticado pela UNE (União Nacional dos Estudantes). A UNE chegou a queimar o livro em praça pública porque ele defendia o capital estrangeiro, e esse livro menciona que o Rômulo teria tido contato com as empresas internacionais, a ESSO etc. O Rômulo respondeu que aquilo o Jaguaribe devia ter ouvido de alguém, mas que ele conversava com todo o mundo com quem tinha que conversar, pois queria criar uma holding pra funcionar para a economia nacional.


Qual a história do Rômulo? Ele se forma em direito na Bahia, é preso várias vezes durante o governo de Juracy Magalhães, enquanto estudante, junto com o Marighela. Tanto que chamo o Rômulo de “guerrilheiro de terno e gravata”, que é a comparação com Marighela. Vai para o Rio, faz todo tipo de coisa, é integralista. É preso pelo Estado Novo, depois solto, e tem um convite do Mario Augusto Teixeira de Freitas, um grande positivista, criador do IBGE, que fala: você tem que sair daqui, eu te dou Alagoas, Santa Catarina ou Acre. E ele foi para a divisão de estatística do IBGE no Acre. Por que Acre? É a terra amazônica de que falava Euclides da Cunha em “À Margem da História”.


Estavam todos, como Euclides, querendo criar o território nacional. Só que o Estado para o positivista não tinha a capacidade de fazer investimento, de multiplicadores da renda. Então ele começa a ler (John Maynard) Keynes via A Economia de Guerra, que é como o planejamento acontece. E ele lê tanto o pessoal do New Deal, como lê os soviéticos.


Depois do Acre ele volta para o Rio e escreve uns três ou quatro artigos, que eu mapeei, para o Observatório Econômico Financeiro, sobre a economia da Amazônia, criticando a economia da borracha, defendendo casa adequada para os seringueiros, modelos de relação de trabalho, já falando da questão ambiental, da importância de se ligar à América Latina. Aí comecei a sacar que a noção de desenvolvimento nacional autônomo, que é diferente dessa ideia que se criou depois de que a industrialização ia resolver todos os problemas do Brasil, como dizendo que isso é o desenvolvimentismo. Essa não é a visão do Rômulo.


Como o Estado é um Estado cartorial, para defender a política de incentivo à ciência e tecnologia, ele cria o Banco do Nordeste, ele e a Assessoria Econômica, e a Superintendência de Valorização da Amazônia, que vai dar na Sudam depois. O BNB é o primeiro órgão para o Nordeste que não tem uma visão hidráulica. Uma espécie de antessala para a Sudene. Só que aí você tem reforma administrativa e reforma agrária pela primeira vez pensadas pelo Executivo, no projeto de Vargas, elaborado pela Assessoria Econômica.


Na época em que ele se tornou assessor econômico do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) houve o célebre debate entre Eugênio Gudin, economista liberal carioca, e Roberto Simonsen, líder industrial paulista, sobre o papel do Estado na economia brasileira e a importância da industrialização. De que forma Rômulo toma parte nesse debate?


O início, o que eu chamo de nascimento da economia política brasileira, é o debate de 1944, quando Roberto Simonsen escreve um livro chamado A Planificação da Economia Brasileira. É criado o CNPIC, Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, para propor o planejamento. O ministro Alexandre Marcondes Filho chama o Simonsen para escrever o texto. Ari Torres e San Tiago Dantas são conselheiros, e Eugenio Gudin, grande liberal, que era da Comissão de Planejamento Econômico, critica o documento, que acaba engavetado.


O Gudin critica, tem a réplica do Simonsen, tem a tréplica e isso foi publicado pelo IPEA. O interessante é que o Rômulo tinha acabado de assumir no DASP, ficando lotado no Ministério do Trabalho. Na hora em que ele entra, o San Tiago Dantas fala para o Marcondes Filho: “ó, esse cara é bom”. Tinha essa coisa de indicações. E aí ele escreveu um parecer que o ministro achou fantástico e resolveu publicar junto. Rômulo vira a noite, tinha 30 anos e já tinha publicado um documento, mesmo sem aparecer o nome dele.


Um dia o Roberto Simonsen entra no Ministério do Trabalho dizendo que queria falar com “esse Rômulo”. Eles ficaram amigos e por uma indicação do Simonsen ele foi criar o departamento econômico da CNI, Confederação Nacional da Indústria. A CNI era quase que um anexo do Estado, porque faltavam quadros e a burguesia tinha bons quadros.

Então ele vai tendo essa trajetória ali, como vários outros que se juntam. São intelectuais orgânicos do Estado.


E tem gente de tudo quanto é tipo. Você tem os técnicos nacionalistas, que é desse grupo de economistas, que se embatem com os técnicos mercadistas, que é o pessoal que quando se montou a Assessoria Econômica de Vargas estava na Comissão Mista Brasil Estados Unidos, que já havia sido criada no governo Dutra. E quem está ali? O Roberto Campos, o Glycon de Paiva, o próprio Gudin, Valentim Bolças e o próprio San Tiago Dantas. O que o Getúlio faz? O BNDE é fruto dos dois. O Getúlio fala: nós queremos financiar vários projetos, e a Comissão Mista dá viabilidade econômica a esses projetos. Só que esses projetos eram todos para empresas estatais. O Roberto fica criticando: “vocês querem estatizar tudo”.


Os técnicos mercadistas também atuavam no Estado, o Estado era o espaço. Esses eu não chamo de intelectuais orgânicos do Estado, mas de técnicos mercadistas. Por isso que eu digo que os mercadistas não eram contra o Estado, enquanto que os neoliberais de hoje são contra o Estado. Eram alternativas diferentes para o desenvolvimento capitalista, a diferença era quem puxava o processo. E os chamados nacionalistas não eram contra o capital estrangeiro.


Então os mercadistas não eram contra a presença do Estado na economia?


Por isso havia o consenso. A Maria da Conceição Tavares dizia que havia um empate técnico no BNDES. O BNDES vai ter as várias etapas e eu vou mostrar as disputas entre eles. O rompimento entre eles se dá em 1959 por conta do acordo com o FMI. O Roberto Campos é a favor da renegociação, o Lucas Lopes assume o Ministério da Fazenda e o Roberto Campos assume o BNDE, ainda sem o S. E aí tem um plano de estabilização monetária que eles propõem. E junto tem uma proposta de renegociação da dívida com o FMI. E aí o Celso Furtado, que tinha começado na Sudene, afirma que o pessoal da Fazenda estava fazendo o jogo do FMI.


A partir daí tem um racha, no momento em que não se faz o plano de estabilização e se rompe com o FMI, esse pessoal vai embora, abandona o Estado. A partir dessa ruptura, surgem novos personagens, que vou dizer que são os intelectuais estadistas, de um lado, que são Furtado, San Tiago Dantas e Darcy Ribeiro, e as elites modernizantes do capital, que não aceitam esse papo de “povo”, com aumento do salário mínimo, democracia, lugar pra todo mundo. Defendem uma restrição do consumo e a centralização do Executivo. O Rômulo já está na Bahia desde 55 e fica até 59, e faz uma revolução na Bahia.


Ele, o Edgar Santos e o Clemente Mariani. Ali são ativadas as bases para a industrialização da Bahia, surgem esses grandes conglomerados, como a Odebrecht, que passam a pautar o Estado. Rômulo pensava a Petrobras não como monopólio estatal, a União teria mais de 50% e com liberdade de ter subsidiárias e mesmo nos setores estratégicos, como a petroquímica, poderia ter mais capital privado do que estatal.


Como é hoje, não?


Mas ainda teria que ter maior parte estatal no refino. Tem um comentário do Getúlio sobre a questão da distribuição: não tocar nesse tema agora. Porque a ideia era até o fim dos anos 60 a distribuição ser tudo BR. Ser tudo BR, porque dá economia de escala, rentabilidade para poder investir e fazer subsídios e escoar para outros negócios. Então ele era nacionalista pra valer, mas não era “nacionalisteiro”, como o próprio Campos admite.


A parte 3.1 do livro é dedicada a compreender a matriz econômica do desenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento não era só economia. A noção de matriz econômica é o seguinte: nesse período tem esse confronto entre projetos de desenvolvimento e por isso eu chamo de Brasil Desenvolvimentista, porque o termo “desenvolvimentismo” não existia. Eles se chamavam de nacionalistas e todos eram técnicos, e havia os técnicos nacionalistas e os outros que eram chamados pelos nacionalistas de entreguistas. Esses entreguistas chamavam os nacionalistas de maneira pejorativa.


O Roberto Campos já em 1955 começa a falar em nacionalista temperamental, tem todo um debate que eu vou rastreando. Percebi que havia um debate sobre o desenvolvimento que envolvia tipo de Estado, a questão nacional, a questão cultural, a política externa, as reformas sociais. Havia já uma ideia de unificar os institutos de previdência e aumentar a cobertura inclusive para o campo.


Aí eu pensei, para que serve esse livro? Comecei a me dar conta que estava contando como se pensou e se praticou o desenvolvimento. E aí eu penso também nos intelectuais críticos da academia. Então tem todo debate do pessoal do ISEB, Hélio Jaguaribe, e a Escola de Sociologia de São Paulo. O pessoal lá do ISEB tentando formular, o pessoal criticando: “vocês são todos cooptados pelo governo”. Aí que começa a surgir, às vezes aparece, a coisa do nacional-desenvolvimentismo. A primeira vez que aparece o conceito de desenvolvimentismo é no livro do Jaguaribe, não para descrever um período, mas para dizer que havia os nacionalistas-desenvolvimentistas, como ele nomeia o Rômulo e o Furtado, e os cosmopolitas-desenvolvimentistas, que aí pega o Roberto Campos como o principal cara.


O livro do Jaguaribe é de que ano?


De 1962. Aí depois a Escola de Sociologia pega o pessoal e começa a falar de desenvolvimentismo, mas como governo JK. A ideologia do governo JK para mascarar as contradições de classe. Já hoje o “desenvolvimentismo” significa colocar o Estado pra fazer gasto crescer, é isso? É um empobrecimento da discussão, e isso uma parte da mídia contribui. Muitos dos economistas heterodoxos também. Eles contribuem ao ver a questão do desenvolvimento como uma operação de política econômica.


Não dá para pensar economia fora do contexto de classe, do próprio pensamento, como se pensa o desenvolvimento. O desenvolvimento não é assunto só de economistas, nunca foi, não deveria ter se tornado e está deixando de ser. Essa humildade de saber compor com as outras dimensões da vida coletiva até valoriza mais o conhecimento do economista. Ao invés de tentar dizer que o desenvolvimento é uma operação de política econômica…


Como fazer a distinção entre o desenvolvimentismo da época do Rômulo e dos “boêmios cívicos” e o desenvolvimentismo da época dos militares?


Essa é outra questão, as pessoas não conseguem – e não vou penalizar as pessoas – deixar de usar a palavra desenvolvimentismo. Para esse período, de 1945 a 1964 eu utilizo Brasil desenvolvimentista, não “desenvolvimentismo”, falo de um projeto-interpretação-utopia. Qual é a noção de projeto-interpretação-utopia? Você precisa de uma interpretação, a partir da qual possa ter um projeto para compor com vários segmentos da sociedade, mas não faz isso se essa interpretação não estiver vinculada a uma utopia exequível, aonde você possa chegar.


E uma interpretação feita não apenas por economistas…


O projeto era como criar uma civilização moderna nos trópicos, com novas formas de inclusão social, importância da técnica, da indústria. Por que eu não gosto do termo cosmopolita? Esses caras participavam muito de conferências internacionais, e da geração de 1980 em diante passou-se a noção de que ser nacionalista é ser xenófobo, antiquado. Esses nacionalistas, no entanto, eram cosmopolitas no sentido que eles tentavam alterar as relações entre centro e periferia. O Rômulo, em 1953, vai para uma comissão internacional para discutir o que seria um fundo de desenvolvimento global e em 1957 participa da Assembleia Geral das Nações Unidas. Depois de ir para a Assembleia, ele faz um discurso no Congresso tratando do contexto internacional…


Eles tinham muito claro as limitações dos empréstimos, dos investimentos, das transações internacionais. Tem uma entrevista em que ele fala: olha, isso aí eu concordo com o Celso (Furtado). Se traz aporte, capital novo, tem que vir, mas de preferência como joint-venture, com alguma empresa nacional.


O Roberto Campos criticava o índice de nacionalização, que hoje é conteúdo nacional. O setor automotivo tinha índice de nacionalização de 90% no início dos anos 1960. Que era obrigação, senão não se liberava crédito para autopeça etc. Aí se criou essa camisa de força, o período nacional-desenvolvimentista de 1930 a 1980. Que tudo cabe. Não se conta o processo, não se contam os agentes, as interpretações, como as interpretações dos agentes vão mudando pelo próprio processo. E essas mudanças não estão pré-determinadas. Como em 1964 muda tudo, essas instituições estatais continuam atuando, mas com um projeto de turbinar a acumulação de capital. O povo “sai da história” e tantos os outros segmentos da sociedade.


Os mercadistas ganharam?


De certa forma, sim. Eu fico usando tanta categoria assim, sou muito fértil nas categorias, me pergunto até que ponto isso faz sentido. Essa coisa dos técnicos nacionalistas e técnicos mercadistas é uma criação minha, mas a partir de algo que a Lourdes Sola vai dizer sobre “técnicos em fins”. Ela pega de uma entrevista do Celso Furtado que diz: não, não diga tecnocrata, mas “técnicos em fins”. Ela usa essa categoria e isso abre minha cabeça. Esses técnicos mercadistas e nacionalistas eles viam projetos de desenvolvimento, mas, no caso dos mercadistas, a nação entrava com dotação e fatores produtivos, território, a população etc. e tal. O Estado dava a alavanca e eu precisava de tecnologia e capital estrangeiro liderando o processo. E aí ia…


É mais uma estratégia do que uma concepção totalmente diferente…


É, já os nacionalistas, não, o desenvolvimento do mercado interno, inclusive inserido no contexto internacional, mudando a inserção, é aquilo que prepara a nação. Então a industrialização e o desenvolvimento do mercado interno são alicerces para a construção da nação. Não os únicos alicerces. A partir dos tecnocratas, não existem mais esses técnicos em fins porque não existe disputa de projetos. Esses técnicos em fins eram amigos entre si, se socializavam e participavam de um conflito intraburocrático.


Ali na troca, um era contra o outro, nas negociações e tal, mas eram economistas, e havia um respeito entre eles. Tanto que tem a ruptura entre Celso e Roberto Campos que é uma ruptura forte, porque, em 1964, um é exilado, e o outro assume o Ministério do Planejamento. Isso mostra que nesse período de 59 a 64 você teve uma reorganização e os intelectuais orgânicos do Estado já começam a se assustar. Algo que já aparece no governo JK, porque quem comanda a política econômica é o Lucas Lopes e o Roberto Campos.


Na questão da reforma agrária, educação, nada disso faz parte. Na hora em que volta o discurso sobre reformas de base, o Jango fica fazendo acordo com todo mundo e coloca gente política, mais quadros políticos no Ministério e esses quadros estratégicos acabam não tendo espaço. Isso está no livro do Wanderley Guilherme dos Santos, “1964, anatomia de uma crise”, tentando mostrar como tem essa radicalização política – ele até chama de polarização nesse sentido, e a tentativa de compor com esses vários segmentos, em tentativas em ziguezague. E aí esses técnicos mercadistas se transfiguram nas elites que vão modernizar, têm uma proposta modernizadora para o capitalismo, alguns vão trabalhar no IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), outros não. Em 64 já não existe mais nem intelectual político da academia, porque alguns vão ser expulsos, nem intelectuais orgânicos do Estado, porque alguns vão ser expulsos do país.


Quem assume o centro da cena é o tecnocrata, que é aquele que fornece os meios para os fins que o rei, que o ditador, define. Mas obviamente ele está de acordo com os fins. Então existe uma falsa neutralidade técnica e, obviamente, esse economista lida com as forças do mercado ali satisfazendo muito das classes e interesses e aí as obras do Fernando Henrique são fantásticas pra mostrar como se dão esses anéis burocráticos. Então os espaços para políticos estão fechados. Não existe debate de projeto, tem um debate e o economista é um tecnocrata. Durante os anos 1970, você tem o tecnocrata e vão surgindo os economistas que fazem pós-graduação na universidade e aí surgem os economistas ortodoxos da academia e economistas heterodoxos da academia. É esse pessoal que assume depois de 1988. Aí já são economistas stricto sensu.


Vai haver a disputa FGV x Unicamp, porque é natural que os economistas pensem nas fronteiras de conhecimento de suas correntes. Mas às vezes eles se esquecem de pensar a nação, falham nas suas funções e ficam numa briga conceitual, sobre “demanda endógena”, “demanda exógena”, a “política fiscal” tem que ser assim… Desenvolvimento não é só política fiscal, monetária. No pós-64, há uma ruptura na questão do desenvolvimento, porque o processo agora é de acumulação de capital, uma nova integração da economia internacional. A  estrutura do poder muda completamente, a relação com a burguesia é outra, há  a naturalização da desigualdade.


Não há nenhuma perspectiva de trabalhar com a desigualdade e achar que crescimento econômico vai levar à superação do subdesenvolvimento. O que acontece? Acaba com inflação e crise da dívida externa em 1982. Sequer a noção de planejamento dá pra ser pensada na maneira como se pensava antes. Obviamente tem algum planejamento, mas a estrutura política e as próprias classes sociais estão completamente outras. E a maneira como se pensa o desenvolvimento é diferente, não tem mais esses conflitos intra-burocráticos. E a noção de que se tem a possibilidade de soluções criativas no plano político, isso que a gente está vendo com o Lula, as coalizões, isso acabou.


E na fase PT após 2002, houve algum resgate desse período desenvolvimentista pré-64?


Esse é um debate muito difícil. O que eu digo é o seguinte: será que essa metodologia que eu desenvolvi pode servir para entender o período 1988 a 2016? Até 2016 é a Nova República, de 2016 a 2022 é um interregno não republicano. O que vem a seguir a gente não sabe. Mas pra contar de 1985 a 2016, período da Nova República, será que dá para pensar nas estruturas econômicas, políticas, os vários segmentos da sociedade, a inserção da economia internacional…Tem que problematizar tudo isso, e olhar os governos.


O governo Lula é desenvolvimentista? Não é assim que eu vejo. E aí a gente identifica a década de 1980 como década perdida, a de 1990 como década neoliberal, a de 2000 como desenvolvimentista… Não. Avançou muito, voltou-se a usar o Estado para o desenvolvimento, voltou-se a fazer política industrial, teve avanço social, mas não tinha interpretação. E sem interpretação desse período e do interregno não republicano, como construir um projeto e uma utopia?


A universidade pública, hoje ela cumpre um papel de articulação junto com os movimentos populares, às vezes com setores do Estado, é dali que se pode criar um novo projeto-interpretação-utopia de desenvolvimento. Então sempre uso o tema projeto-interpretação-utopia, um projeto de desenvolvimento nacional, que era o termo que eles usavam. O Cândido Mendes de Almeida vai dizer: desenvolvimento e nação são os dois termos em torno dos quais se estrutura o nosso projeto. Então é desenvolvimento nacional.


Estou lendo Darcy (Ribeiro), mesmo o Darcy do início dos anos 1970 fala em desenvolvimento nacional autônomo. Celso Furtado toda hora era assim que ele expressava. E autônomo era conduzido de dentro, não quer dizer isolado, à parte, como os novos neoliberais dizem. Eu fico criando conceito, então Gustavo Franco, Armínio Fraga são os novos neoliberais, porque quem chama de neoliberal o Gudin e aí eu mantenho – o Ricardo Bielschowsky chama o Gudin de neoliberal, mas a noção de neoliberal do Gudin, no Bielschowsky, é uma noção que ele pega não sei de onde, acho que é do livro do (Thomas) Skidmore. Em 1985 ninguém falava em neoliberalismo, acusando neoliberalismo. Neoliberal era o pensamento liberal, ortodoxo, da época. Considero que é um pensamento que não condena a industrialização, condena o planejamento.


Para eles, A indústria que a gente pode desenvolver é uma indústria devagar, tem que servir para formar mão de obra, desde que seja competitiva, de preferência com o capital estrangeiro. Produzir máquina, produzir automóveis, isso aí é coisa pros outros, a gente tem que diversificar a pauta de exportação de produtos primários. Não é que eles são contra a indústria ou industrialização.


Eles são contra o planejamento…


São contra o planejamento. Por que novos neoliberais? Porque o Gustavo Franco, o Fraga, todos os outros, são netos do Gudin.  Mário Henrique Simonsen é uma espécie de filho e eles são netos. Só que eles entram num contexto, nos anos 1990, em que você tem uma economia industrializada, que é uma das principais economias industrializadas do planeta, e uma sociedade urbanizada. Eles vão querer reduzir o Estado e promover uma nova recessão internacional. Então são neoliberais num outro contexto. Uma coisa é você ser neoliberal criando uma indústria. Agora estão querendo dar um choque, né? Um choque de anorexia produtiva, forçar uma anorexia produtiva, nisto que hoje se chama de “desindustrialização”.


O interessante é que você, ao estudar o grupo do Rômulo, ganhou outra perspectiva das categorias que até então empregava para pensar o desenvolvimento, não é?


É isso. Então quando a pessoa fala de desenvolvimentismo daquela época, eu não vou dizer que eu não uso, mas eu jamais utilizo a palavra desenvolvimentismo, nem me qualifico assim, mas aí tem toda aquela coisa eu não posso chegar com a minha obra e querer que as pessoas parem de usar o seu léxico, seria uma idiotice. Tem um autor que eu usei muito que é o (Reinhart) Koselleck, usando as palavras dele é como se eu pegasse o núcleo conceitual do passado e comparasse com o núcleo conceitual do presente e aí tenho um empobrecimento lexical.


Não reconheço os meus personagens no léxico dos desenvolvimentistas de hoje e eles não se chamavam de desenvolvimentistas.  Então um pouco a síntese é que os confrontos no Brasil desenvolvimentista levaram a uma resolução que a maneira como os confrontos se resolveram foi de modo a pôr fim ao Brasil desenvolvimentista. O pós- desenvolvimentismo (1964-1988) pega as instituições e ao mesmo tempo ele surge dos escombros do período anterior. Ou seja, um dos lados foi literalmente deslocado, exilado, eliminado do espaço público. E aí se criaram novos personagens, intelectuais acadêmicos, economistas ortodoxos da academia e economistas heterodoxos da academia.


Como toda história, como o Koselleck vai falar, é a redenção da parcialidade, está sempre criando imagens mais completas, mais vivas da história. É, na verdade, o meu olhar de hoje que está permitindo revelar coisas que outras experiências não permitiam. E, ao mesmo tempo, ao fazer isso, eu consigo lançar perspectivas que deslocam os intelectuais, atores críticos hoje. Essa era a pretensão.


Quem são os Rômulos e Furtados de hoje, capazes de levar a cabo um projeto-interpretação-utopia?


Teríamos que nos perguntar o que é o Estado hoje, o que é a burguesia, o que é o trabalhador. Será que ainda são os mesmos agentes, como diz, por exemplo, o Bresser Pereira, que considero fantástico por sua capacidade de se reinventar? O Estado foi conquistado por algumas castas e tal. Quem irá superar? Fica difícil pensar um projeto sem uma interpretação. Ao mesmo tempo, não há mais espaço para Rômulos, Furtados. Hoje é tudo coletivo, e em rede. Fica a questão de como gestar uma perspectiva de desenvolvimento nacional, com democracia e combate à desigualdade, se é que é possível nesse contexto que está aí. Porque senão a gente vai ficar iludindo, é desenvolvimentismo e tal, (a economia) cresceu e tal.


Nada mais atual do que pesquisar o Rômulo…

E esse livro que está dizendo que o desenvolvimento não é assunto só de economista ganha prêmio do Cofecon. Quem sabe são sinais de novos tempos?


Paula Quental é jornalista, mestre pelo IEB-USP e editora deste site.

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