Por Pedro Paulo Zahluth Bastos, Ricardo Knudsen, André Luiz Passos Santos e Henrique Sá Earp*
O que diz o governo sobre a Reforma da Previdência? Por que os cálculos são falsos e errados?
O combate aos privilégios é um dos principais argumentos em defesa da reforma do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Alega-se que o fim da aposentadoria por tempo de contribuição (ATC) acabaria com o privilégio de trabalhadores com maiores renda e estabilidade de emprego que podem se aposentar mais cedo e que, por receberem a aposentadoria por mais tempo, onerariam o sistema público de aposentadoria de um modo injusto. Como estes aposentados se concentram nos estados mais ricos, eles prejudicariam os trabalhadores mais pobres que se concentram nos estados mais pobres, o que agravaria não só a concentração pessoal da renda mas também a concentração regional.
Para apoiar a afirmação, a Secretaria da Previdência do Ministério da Economia apresentou cálculos falsos à imprensa e aos deputados federais em várias ocasiões, sem apresentar a planilha com a memória de cálculo, que obtivemos através da Lei de Acesso à Informações (LAI). Auditamos os cálculos oficiais obtidos via LAI e encontramos indícios de falsificação ou, no mínimo, incompetência inexplicável. Os cálculos manipulam os dados sem respeitar a lei e inflam o custo fiscal das aposentadorias atuais para justificar a reforma e exagerar a economia fiscal e o impacto positivo (falso) sobre a redução da desigualdade da Nova Previdência.
Onde os cálculos oficiais do Ministério da Economia alegam que as regras atuais provocam déficit para o RGPS (ou subsídios para os aposentados ricos), é o contrário: geram superávit e subsidiam o RGPS. Na verdade, as aposentadorias com grande tempo de contribuição, maior valor e menor idade financiam a aposentadoria de menor valor dos trabalhadores que se aposentam mais velhos e com pouco tempo de contribuição. Elas diminuem a concentração pessoal e regional da renda, ao contrário do argumento oficioso.
Onde os cálculos oficiais alegam que a reforma melhora a situação dos trabalhadores mais pobres, também é o contrário: os mais pobres são forçados a contribuir por bem mais tempo para receber muito menos (se recebem acima do salário mínimo) ou para ter o mesmo benefício (se recebem o salário mínimo) depois da reforma, além de correr o risco de se tornar “inaposentáveis” por não alcançarem o tempo de contribuição exigido e verem suas contribuições confiscadas.
As planilhas foram enviadas junto com uma nota informativa intitulada “A Nova Previdência combate Privilégios”, que apresenta o resultado dos cálculos feitos na planilha sem mostrar como os cálculos são feitos (1). Os mesmos resultados foram apresentados pelo Secretário da Previdência Social Rogério Marinho na apresentação da reforma à imprensa em 25 de abril de 2019 e em outras ocasiões como audiências públicas no Congresso Nacional. Ou seja, são estes os cálculos que sustentam o argumento do governo de que a reforma do RGPS é necessária para combater privilégios que inviabilizam o sistema, a partir dos quais se anuncia “economias” irreais com a reforma proposta (2).
As planilhas oficiais não são autoexplicativas, portanto precisamos fazer a engenharia reversa para entender como o governo chegou aos resultados. Se o governo tivesse seguido as regras legais para cálculo das contribuições e das aposentadorias, é claro que não seria necessário fazer qualquer engenharia reversa. Qual o resultado da auditoria?
Onde o governo afirma calcular uma aposentadoria por tempo de contribuição (que exige 30/35 anos de contribuição para mulheres e homens), na verdade calcula uma aposentadoria por idade (AI).Ao usar a idade e não o tempo de contribuição como critério de acesso à aposentadoria, o cálculo oficial não reduz o valor das aposentadorias pelo Fator Previdenciário que desconta a imensa maioria das aposentadorias por tempo de contribuição hoje em dia.
Ora, em parte por causa do desconto gerado pelo Fator Previdenciário e em parte por causa da alíquota contributiva, a ATC é superavitária para o RGPS, mas esta fonte de superávit será eliminada com base em argumentos e cálculos falsos. Logo, os custos atuais das aposentadorias por tempo de contribuição são superestimados pela Secretaria da Previdência para justificar a necessidade da reforma do RGPS, que tem efeitos contrários aos anunciados (3).
Mesmo com esta falsidade inicial (tomar uma ATC por uma AI), os cálculos desta aposentadoria por idade também são errados. O principal problema é que não se calculam as contribuições do empregado e do empregador corretamente. Para um aposentado com salário de R$11.700,00 (onze mil e setecentos reais), suas contribuições (11%) não são feitas pelo teto do RGPS, nem as do empregador (20%) são feitas sobre o salário integral (R$11.700,00). Ambos contribuem sobre o valor de 5 SM sem qualquer explicação.
Assim, de novo, os cálculos oficiais superestimam o custo fiscal da ATC e também as “economias” geradas pela reforma. Feitas as correções de acordo com a legislação, passamos de um déficit estimado de quase R$ 2 milhões pelo governo (à taxa de desconto de 2,5%a.a.) para um superávit de quase R$ 1,5 milhão (à taxa de 2,5%a.a.) e superior R$ 2,2 milhões (à taxa de desconto ainda subestimada de 3%a.a.). Uma diferença de R$ 4,2 milhões para apenas 4 aposentadorias, a metade delas deixando pensão por morte. De posse das planilhas oficiais até então em sigilo, é imperativo reconhecer que a construção do discurso do déficit provocado pelas aposentadorias por tempo de contribuição se baseia em manipulação estatística e atuarial.
Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – IE/UNICAMP, Nota do Cecon, n., setembro de 2019 – A falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência Social
Ao eliminar a ATC que gera, hoje, superávit para o RGPS, a reforma busca a compensação financeira desta perda com o corte no valor de aposentadorias que jogará milhões de famílias dependentes de aposentados na pobreza, em razão de novos critérios de acesso (tempo de contribuição e idade) e cálculo (redução) dos benefícios.
Esta perda fica clara para trabalhadores que se aposentarão pós-reforma com o salário mínimo ou pouco acima dele. A alegação do governo é que a Reforma da Previdência vai aumentar levemente o subsídio para o trabalhador mais pobre, porque reduz a alíquota de contribuição de 8% para 7,5%.
O primeiro problema do argumento oficial é que, para os homens que se aposentam por idade, o aumento do tempo de contribuição mínimo proposto pelo governo em cinco anos (de 15 para 20 anos, uma variação de 33%) não é compensado pela redução da alíquota (pouco mais de 6%). É certamente por isto que o governo propõe avaliar uma aposentadoria por tempo de contribuição para um aposentado com 60 anos e 35 anos de contribuição antes da reforma com a condição 65/40 pós-reforma. Contudo, a condição inicial não é representativa das aposentadorias dos trabalhadores mais pobres: quem se aposenta com 1 SM tipicamente o faz por idade.
Escolhida a comparação por tempo de contribuição, fazê-lo a partir da idade de 60 anos também é enganoso, pois nas regras atuais o trabalhador mais pobre que cumprir 35 anos de contribuição pode se aposentar muito mais novo sem perda de valor da aposentadoria, pois sobre o piso previdenciário (o SM) não há desconto do Fator Previdenciário.
Ainda assim, a planilha não faz o que o governo professa fazer: o governo afirma calcular uma aposentadoria por tempo de contribuição, mas também a troca por uma aposentadoria por idade mínima (AIM), que exige hoje muito menor tempo de contribuição do que os 30/35 anos para mulheres e homens, mas tem alíquota mínima de 8% para o trabalhador de 1 salário mínimo (28% com a contribuição patronal). Ao invés de calcular a aposentadoria com 60 anos de idade e 35 anos de contribuição, os cálculos correspondem a aposentados com 20 anos de contribuição e 65 anos de idade. É isto que explica o suposto aumento tímido do subsídio, já que neste caso a única diferença é a alíquota de 7,5% para o trabalhador.
No entanto, mesmo assim a comparação é enganosa, pois com apenas 15 anos de contribuição e 65 anos de idade o trabalhador asseguraria o salário mínimo nas regras atuais. Ademais, para valores acima do piso, a diferença entre a taxa de redução do salário por não atingir o tempo para a integralidade (a redução da taxa de reposição) é muito maior do que a redução da alíquota de 8% para 7,5%: na regra antiga a redução é de 10% e na regra da “Nova Previdência” é de 40% até 20 anos de contribuição masculina.
Se o governo comparasse a aposentadoria de um trabalhador com salário mínimo e com tempo de contribuição de 35 anos antes e pós-reforma, chegaria ao resultado que já demonstramos em outra nota técnica e repetiremos aqui: este trabalhador será forçado a contribuir mais e por mais tempo para ter o mesmo benefício (o piso salarial) depois da reforma, pois só poderá se aposentar com 65 anos, quando hoje pode se aposentar com qualquer idade desde que cumpra 35 anos de contribuição, pois sobre o piso previdenciário não se desconta o Fator Previdenciário.
Além desta falsidade inicial (tomar uma ATC por uma AI), os cálculos oficiais subestimam o subsídio atual às aposentadorias por idade mínima também porque consideram para análise uma aposentadoria com 20 anos de contribuição. Porém hoje a exigência mínima é de 15 anos de contribuição e, na média, as AIM ocorrem com 19 anos. Como o tempo de contribuição exigido é menor hoje, as contribuições totais são menores do que no cenário pós-reforma embora a alíquota seja de 8% (e não 7,5%), logo o subsídio hoje também é maior do que no cenário pós-reforma. A subestimação do subsídio atual é feita para construir o argumento falso de que a reforma vai aumentar o subsídio para os trabalhadores pobres.
Como para a aposentadoria por idade mínima masculina para o trabalhador pós-reforma serão necessário 20 e não 15 anos de contribuição, o trabalhador mais pobre continuará recebendo salário mínimo, mas precisará contribuir cinco anos a mais, ou 33% a mais. A trabalhadora mais pobre precisará cumprir dois anos de idade a mais, 62 anos e não 60 anos com 15 anos de contribuição, uma condição que não foiatingida por 74,82% das mulheres que se aposentaram por idade em 2016.
Ademais, para salários superiores ao piso, a redução do salário para a aposentadoria com a reforma será de 40% na condição mínima de 15 até 20 anos de contribuição, enquanto hoje é de apenas 15% para 15 anos de contribuição e de apenas 10% para 20 anos. Ou seja, o subsídio para os pobres será muito menor, e não maior como alegam os cálculos do governo. É exatamente este corte no valor da aposentadoria que jogará milhões de famílias na pobreza, como mostraremos em outra nota técnica com tratamento inédito de dados da PNAD.
Leia nota na íntegra AQUI.
Notas
(1) A nota está disponível no site do Ministério da Economia, tendo sido publicada no dia 29/04/2019 [http://www.economia.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/notas-informativas/2019/ni-nova-previdencia-e-combate-a-privilegios-v10.pdf/view]. Para download: Acesso em 09/09/2019.
(2) É digno de nota que a apresentação à imprensa foi divulgada em resposta às críticas ao sigilo das contas imposto pelo governo, mas a planilha não foi publicada junto com ela: Fabrini & Caram (2019) e UOL (2019). A apresentação está disponível no site da Secretaria da Previdência: http://www.previdencia.gov.br/2019/04/secretario-especial-apresenta-dados-e-estudos-que-embasam-nova-previdencia/
ou no link direto para download [http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/04/Transparencia_previdencia_v4.pdf]. Para a apresentação feita na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, ver http://estaticog1.globo.com/2019/05/08/ApresComissaoEspecial080513h28.pdf. Acesso em 09/09/2019.
(3) O fator previdenciário é explicado no anexo no final desta nota, onde é apresentada sua demonstração matemática. Discutimos extensamente o cálculo de aposentadorias pelo fator em uma nota técnica anterior: Bastos, Santos, Knudsen e Sá Earp (2019).
*Os autores são respectivamente Professor Associado do Instituto de Economia e pesquisador do Cecon-UNICAMP, ex-professor visitante na UC Berkeley; Doutor em Química (USP), especialista em Design de Experimentos e Proprietário da KnudZen Consulting (Itália); Mestre em História Econômica (USP), ex-analista bancário aposentado; Professor Doutor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp, Mestre em Física Teórica (University of Cambridge) e PhD em Matemática (Imperial College London).
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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