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Foto do escritorBrasil Debate

A democracia, a justiça e o julgamento de Lula

Para Robert Dahl, principal referência política liberal norte-americana para os estudos de democracia, os regimes políticos democráticos têm dois eixos fundantes: a participação e a contestação. Ou seja, os sistemas políticos modernos devem organizar-se a partir da sociedade civil, em partidos que concorrem ao poder e devem ter garantida sua liberdade de organizar-se e competir por cargos deliberativos.

Se os critérios apresentados por Dahl se aplicarem ao Brasil, o golpe de 2016 nos afastaria de uma democracia plena. Teríamos hoje o que o teórico chama de oligarquia competitiva, ou seja: um regime de competição em que grupos do mesmo campo disputam cargos sem contestação da orientação de governo. Em bom português o controle da contestação garante que: ganhe quem ganhar, ganha o mercado. Portanto, é importante apropriar-se do sistema político; porque a agenda neoliberal não suporta contestação – o neoliberalismo é bastante vulnerável quando questionado, e se o mercado quer dar sequência ao seu projeto de reformas, é necessário o golpe para garantir a agenda.

Isso não é novidade na história do Brasil. Agendas antidemocráticas foram implantadas através de mudanças do regime político. Foi assim a proclamação da república e a formação da aliança café com leite – implantou-se uma espécie de oligarquia competitiva controlada pelos barões do café; o pós-Vargas queria impedir a contestação e criminalizou a agenda socialista. No período getulista (1930-1945) podemos afirmar que não havia espaço para contestação da força hegemônica, mas ampliou-se a participação por meio das reformas que expandiram o direito ao voto e a participação política, além de reformas urbanas e de inclusão social, criando a hegemonia de uma força que promovia inclusão. O regime militar (1964-1988) foi menos complexo: um período de hegemonia fechada porque tanto participação quanto contestação foram sitiadas pelas forças que deram o golpe.

O fato recente e talvez inédito é que a constituição de 1988 queria permitir um regime amplamente democrático da perspectiva liberal (Dahl chama isso de poliarquia), onde participação e contestação são tidas como princípios do sistema. A referência liberal é proposital para mostrar que o julgamento de Lula e a série de ataques que a coalizão golpista tem dirigido ao PT, aos sindicatos e aos movimentos sociais atentam contra democracia liberal moderna cujo modelo é os EUA, e não a qualquer suposto esquerdismo dessas forças políticas.

Como resultado não planejado daqueles que têm como objetivo cercear o direito da candidatura de Lula e da contestação da agenda neoliberal ocorre o atentado direto contra a democracia. O ataque concreto que ocorre hoje no Brasil é direcionado às instituições liberais e não exclusivamente ao partido ou ao seu projeto. Quando se impede a defesa da alternativa ao hegemônico e limita a participação política ao ponto de impedir as chances reais de a oposição alcançar o poder, é sinal de que o sistema não funciona de forma plena – logo, não há cálculo racional que justifique àqueles que contestam o sistema se manter fiéis às regras que os excluem.

Se a justiça brasileira impedir a candidatura da principal figura da oposição e se organizar de forma a não permitir que os partidos contestem as reformas liberalizantes promovidas por um governo que não foi eleito, demonstrará que não está disposta a garantir aquilo que a constituição de 1988 expressou como princípio da nossa organização política: a democracia participativa e deliberativa. Assumirá então a postura de sensor da participação política porque o judiciário passa a deliberar sobre a política.

Querendo ou não seus algozes, o julgamento de Lula não está circunscrito a uma ação que envolve o indivíduo Luiz Inácio. Qualquer pessoa minimamente informada sabe que o que se está julgando é a consequência direta daquela ação: o direito de Lula ser candidato. Impedir isso significa reduzir na prática ou impedir que a oposição tenha reais chances de vencer.

A ciência política (ao contrário da petulância do judiciário brasileiro) tem muito claro o que é democracia: em sistemas políticos democráticos, em democracia plena todo, repito, todo cidadão tem o direito a candidatar-se e a concorrer a um cargo público (isso implica ampla participação). Mas não é suficiente. Também é preciso que as estruturas tenham poder real de contestação. Ou seja, é preciso que a oposição tenha chances reais de contestação da ordem vigente e que possa buscar a vitória no pleito. Portanto, é preciso que para a participação coexista com um jogo equilibrado de disputa eleitoral.

Quanto mais filtros a esses princípios se colocam, menor será o nível de democracia. Se a oposição for impedida em suas candidaturas, acionada juridicamente e perseguida, enquanto a situação desfrutar de condições ideais, não haverá democracia. O que haverá são oligarquias que competem dentro de um mesmo projeto.

O envolvimento do judiciário no sistema político democrático tem custado a impossibilidade da contestação e forçado a judicialização da agenda política. Em alguns casos, a perseguição é tamanha que qualquer contestação ao status quo é vista como esquerdismo e passível de enquadramento. As ações ligadas ou aliadas ao PT são tratadas sob suspeita prévia. O uso de subterfúgios criados pela operação Lava Jato são ferramentas de disputa política e afeta os mais remotos locais onde os princípios do direito de defesa são retirados e os regimes competitivos afetados.

A ciência política moderna é sustentada pela mesma fonte do direito: ambas são fruto das críticas kantianas.  Uma análise a partir do imperativo categórico desmontaria a operação Lava Jato. O problema da Lava Jato é que ela hierarquiza princípios universais invioláveis e justifica sua fórmula através do ativismo jurídico com lastro nos recursos midiáticos. Ou seja, a Lava Jato tem objetivos que ela reivindica morais, mas que são políticos. E, se tem finalidade e torna esses objetivos maiores que os princípios universais do direito, viola a estrutura da justiça. Na base dos imperativos categóricos, está que nenhum fim é justificável porque quando isso ocorre, se hierarquiza categorias universais que não podem ser valorativas. Por exemplo, a convicção de um crime não pode vir antes do direito da defesa – por isso a prova vem primeiro que a condenação. Tudo isso é conhecimento difuso, matéria de primeiro ano dos cursos de direito em todo país. Ou deveria ser.

É certo que os procuradores podem condenar Lula. É certo que a estratégia de retirar a candidatura de Lula do cenário político inviabiliza que a oposição organizada em torno do PT tenha chances reais de ascensão e mesmo de contestação. A sequência dada ao golpe, pelo impeachment, as reformas de Temer e a agenda para o futuro montada pelos golpistas mostra que a disputa é pelo projeto de país; pela forma de governo.

Nesse contexto é fácil entender que o golpe nasceu no parlamento e é costurado pelo centrão – que tem afinidade com o neoliberalismo das grandes corporações. Mas, nesse novo capítulo o protagonismo é do judiciário (de fato omisso na condução do impeachment). Seu lastro político é um equívoco porque é o último filtro entre a violação ou não da democracia. Por isso o golpe agora pode ser desmontado, ou, se levadas às últimas consequências, vai romper com o estado de direito no Brasil.

Ironicamente, as operações que têm nome de limpeza (Mãos Limpas e Lava Jato) foram expressivas em aumentar a sujeira. Só não está claro se os juízes ao se comportarem assim têm a autocrítica de assumirem que tomaram partido.

Crédito da foto da página inicial: Rovena Rosa/Agência Brasil

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