Há esperanças de que no terceiro mandato de Lula se retomem ações como o Conselho Nacional das Cidades, a regularização fundiária, a ampliação de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social). Mas será que esses aparatos bastam para reduzir as desigualdades?
Ao final do ano de 2022 respiram-se ares de esperança, graças à eleição do terceiro mandato do presidente Lula. Encerram-se, a partir do primeiro dia de janeiro de 2023, as sandices diárias do cercadinho.
Porém, mais do que ouvir deseducações negacionistas, por quatro anos de Presidência de Jair M. Bolsonaro, assistimos a um processo meticuloso e contínuo de des-democratização. Não somente em temas essenciais à preservação da vida, mas o lento minar, do mínimo esperado, das interações sociais, expressas no ouvir e respeitar divergências.
A maioria dos brasileiros habita cidades. Tornamo-nos seres políticos, já que, segundo Aristóteles, o homem é um ser político, não naquela ação partidária, mas por habitar a polis, o lócus das interações sociais que nos permitem o convívio inteligível, harmonioso e respeitoso entre divergentes e heterogêneos.
No entanto, nossas cidades estão distantes da visão harmoniosa; elas se apresentam, a priori, como descontínuas, fragmentadas e desiguais, distanciando trabalho e moradia, obrigando a deslocamentos diários, consumindo saúde, dinheiro e energias, daqueles que pouco as dispõem.
Colocam em risco a dignidade de populações marginalizadas, onde a prometida convivência diária entre diversos e heterogêneos apresenta-se desequilibrada.
Estes desequilíbrios expressam-se nas heranças segregacionistas, na lógica da aglomeração x dispersão; onde centralidades, de baixa densidade habitacional, atendidas plenamente em infraestruturas e equipamentos urbanos, opõem-se a periferias (não somente as físicas) com baixa oferta de infraestruturas e equipamentos urbanos, com alta densidade populacional.
O poder público exerce sua atuação e gestão através de seus representantes de classe, da elite que o conforma, a partir dos interesses do capital que o sustenta – tal como o mercado imobiliário, que lhe dá suporte, promovendo espacialmente sua superioridade e hegemonia, através da obstrução e segregação das classes periféricas, valendo-se das legislações urbanísticas disponíveis.
Esta dominação espacial desvenda o aparato estatal, alicerçado em práticas político-culturais, que representam a preponderância de um grupo hegemônico, que busca esconder, suprimir, cancelar ou marginalizar a expressão espacial dos grupos subalternos.
A atuação do presidente Bolsonaro representou este modelo de atuação, quando buscou obstruir e negligenciar os instrumentos legais do direito à cidade, construídos desde o final do século passado, tais como o Movimento Nacional de Reforma Urbana, da década de 1980; a Constituição Federal de 1988, nos artigos 182 e 183; a Lei Federal 10.257 (Estatuto da Cidade) e os Planos Diretores Participativos – cuja inspiração seria transformar as cidades em espaço equitativos, justos e inclusivos.
Vale lembrar que o Estatuto da Cidade apresenta instrumentos reguladores de acesso ao solo urbano, para garantir que ações da municipalidade não privilegiem aqueles poucos, em detrimento da coletividade, a fim de recuperar e capturar a valorização que venha a ocorrer.
Esses instrumentos são conhecidos como instrumentos de recuperação da mais-valia, ou de gestão social da valorização do solo urbano – incorporando a concepção de um controle social, capaz de cuidar com equidade, da justiça espacial urbana.
Se as esperanças para o terceiro mandato residem na retomada de ações que garantam a inclusão social e uma participação social equalitária; por exemplo, no Conselho Nacional das Cidades; ou na garantia do acesso à saúde, com o amplo acesso ao serviço de saneamento básico; ou ainda, com o estímulo à participação urbana equitativa, com a regularização fundiária, a ampliação de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social); devemos imaginar que esperanças não serão únicas e suficientes para a justiça espacial urbana.
Basta lembrar que já nos primeiros meses da Presidência de Bolsonaro, se gerou o enfraquecimento da participação social em Conselhos e Comitês Gestores, como o Conselho das Cidades (ConCidades) e o Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (CGFNHIS), quando ambos sofreram interferência, com a redução da participação da sociedade civil e restrição ao número de reuniões, de modo a impedir a prometida democracia participativa, capaz de gerir uma política urbana descentralizada e equânime.
Então, cabe discutir as ações de Estado enquanto regulador da gestão participativa, uma vez que os modelos vigentes de empresariamento urbano buscam tornar nossas cidades atrativas ao financiamento externo, onde o papel da administração pública é a mediação aos interesses estratégicos do desenvolvimento capitalista, em um viés neoliberal, onde um capital “flexível” relativiza legislações e regulações, tal como um empreendedorismo competitivo, condicionados à necessidade de gerar valor excedente – às custas da relativização da participação equitativa.
Não bastará a legislação como garantia à participação comunitária nos Comitês e Conselhos gestores se os instrumentos urbanísticos empregados preservarem uma sociedade estruturada para ser propositalmente desigual.
Verificamos que as ações do Estado, e seus aparatos, não têm eficácia ou interesse em enfrentar os privilégios urbanos, adquiridos pelas classes dominantes, ao longo de sua hegemônica atuação. Faltam associar-se às legislações urbanísticas uma transformação social capaz de enfrentar uma sucessão histórica de privilégios, que geraram desigualdades, que as cidades expressam espacialmente.
Enfrentar privilégios amparando-nos somente em legislações potencialmente nos levará, em futuro, a novos cercadinhos e suas sandices, se não enfrentarmos as ameaças de uma sociedade baseada na desigualdade. Estaremos frente à inversão do Labirinto de Cnossos, onde os desprivilegiados, tal qual Teseu, orientam-se pelo fio de Ariadne, não para escapar do labirinto, mas para conduzi-los, por labirínticas legislações, diretamente ao Minotauro.
Enrique Staschower é arquiteto, mestre em Filosofia (IEB/USP), doutorando em Mudança Social e Participação Política (EACH/USP). Docente pesquisador do Centro Universitário Fundação Santo André e Universidade Anhanguera. Membro do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) e Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico de Santo André (COMDEPHAAPASA).
Crédito da foto da página inicial: Nara Quental
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